A mulher e a pandemia

Cenário agravado com a pandemia da Covid-19, é sabido que esta crise sanitária e financeira mudará a vida das pessoas no Brasil e no mundo.

Infelizmente as perspectivas para o pós-pandemia não são animadoras em especial para as mulheres, e todos os problemas já conhecidos serão potencializados pela quebra da economia mundial e aumento dos índices de desemprego. Mesmo quando se comprova que dirigentes mulheres internacionais destacaram-se positivamente no enfrentamento desta crise acadêmica, como exemplos: Islândia, Nova Zelândia, Taiwan, Singapura, Noruega, Finlândia, Alemanha, Dinamarca e Bélgica. Embora vivendo em realidades diferentes, a pandemia está mostrando que as mulheres estão criando uma nova forma de fazer política, diferente dos homens, tão viris, ao mostrar que não sabem cuidar das pessoas. Afinal, cuidar é uma construção histórica, as mulheres foram criadas para cuidar, assim, exercem também na política a atitude do cuidado. Entretanto, na política, as mulheres são apenas 10 dos 153 chefes de Estado eleitos em 2018, de acordo com a União Interparlamentar. Somente um quarto dos membros dos parlamentos do mundo são mulheres.

Segundo o Jornal “O Estado de Minas”, em reportagem de 16/11/2020, cresce o percentual de mulheres eleitas em prefeituras do país.

Ao fim do primeiro turno, 12,2% dos eleitos são mulheres; ainda há cinco candidatas disputando o segundo turno. O percentual supera os 11,6% de ocupações femininas das eleições de 2016.

O número de mulheres que venceram as disputas para prefeituras neste primeiro turno das eleições municipais de 2020 supera o total de ocupações femininas para o cargo em 2016. No Brasil, 12,2% das lideranças dos municípios serão exercidas por mulheres. Para o segundo turno, cinco candidatas ainda se mantêm no páreo. Já nas eleições passadas, o percentual final ficou em 11,6%.

Nas capitais, cinco mulheres permanecem na disputa em segundo turno. Manuela D’Ávila (PCdoB), de Porto Alegre, recebeu 29% dos votos em15/11. Candidata em Recife, Marília Arraes (PT) teve 27,95% dos votos. Socorro Neri (PSB), em Rio Branco, ficou com 22,68%. Já a Delegada Danielle Garcia (Cidadania), em Aracaju, conquistou 1,31% do eleitorado; e Cristiane Lopes (PP), em Porto Velho, 14,32%.

Entre as eleitas no primeiro turno está a atual prefeita de Palmas (TO), Cinthia Ribeiro SDB), reeleita com 36,24% dos votos.

Já no Entorno do DF, se elegeram prefeitas Débora Domingues (PL), em São João D’aliança; Iolanda Holiceni (DEM), em Alvorada do Norte; Dona Dete (DEM), em Simolândia; e Angela (DEM), em Mimosa de Goiás.

Ainda na disputa está a atual deputada federal Patrícia Ferraz (Pode), candidata à prefeitura de Macapá (AP), onde, em razão da crise energética, o primeiro turno foi suspenso. A nova data do pleito do primeiro turno é 13 de dezembro; já o segundo ficou para o dia 27.

Em relação às cotas, o aumento, ainda que pequeno diante da representação de homens na política, também é superior a 2012, quando o número de eleitas correspondeu a 11,8% do total, com 659 prefeitas. Um dos motivos para a garantia de mais espaços das mulheres nas prefeituras pode ser associado às cotas. Pela primeira vez, além de 30% das vagas para se candidatar serem reservadas para elas, 30% dos fundos eleitoral e partidário também ajudaram a fortalecer as campanhas das concorrentes.

O fim das coligações para os pleitos proporcionais também fez jus ao percentual, já que as cotas foram exigências aos partidos e não às coligações.

Mesmo assim, ainda é próximo da margem de cotas o número de mulheres que se andidataram à prefeita, vice-prefeita ou vereadora. De acordo com o TSE, em 2020, 33,15% das candidaturas para esses cargos foram de mulheres. Apesar de representarem 52,5% do eleitorado brasileiro, as mulheres são 45,3% das filiações a partidos.

Para cargos no legislativo, as regras ainda são ultrapassadas. Por isso, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), prometeu pautar uma proposta de emenda Constituição que institui cota para mulheres nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados.

O texto prevê 10% das vagas para mulheres na próxima legislatura, com escalonamento de 2% e 16% nas eleições subsequentes. Segundo Maia, a representação “é muito pequena”. “Hoje, já temos quase 2 mil municípios que não têm uma única mulher representando a sociedade nas câmaras de vereadores”, disse, se propondo a discutir o tema ainda este ano.

É lenta a evolução da conquista de espaço da mulher na sociedade, apesar de constante, porém isto não é uma característica apenas do nosso país. Em recente seminário on line, promovido pela ONU Mulheres, “Inversionistas por la Igualdad”, realizado em 11/11, relatou-se que é péssima a distribuição de financiamentos e investimentos em empresas de mulheres. Falou-se por exemplo, que somente 7% dos investimentos feitos em empresas, são realizados em empresas de mulheres, no mundo todo.
A informação que anotei como importante foi que a grande empresa auditora Goldmann Sachs, dispõe de um treinamento gratuito para que mulheres se capacitem em gestão de empreendimentos e captação de investimentos. O programa chama-se: Goldmann Sachs Ten Thousand Women. O endereço para acesso pela internet é:
https://es.coursera.org/learn/10k.women-esp-1.

Existe um déficit de crédito de aproximadamente 285.000 milhões de dólares para as #PME, empresas cuja propriedade é de mulheres. Além disto, segundo a ANESP, Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, o Fundo de opulação das Nações Unidas (UNFPA) destaca a acentuação das desigualdades de gênero e a piora da qualidade de vida das mulheres. Além disso, mostra a predominância das mulheres na força de trabalho da saúde e, por conseguinte, na linha de frente do combate à Covid 19: em nível global, cerca de 70% das equipes de trabalho em saúde e serviço social são compostas por profissionais do sexo feminino, incluindo, além de médicas, enfermeiras, parteiras e trabalhadoras de saúde da comunidade em todo o mundo. O Brasil segue o padrão mundial. Estimativas do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), com base em dados do IBGE, indicam que mulheres representam 65% dos mais de seis milhões de profissionais atuantes no setor público e privado de saúde, em todos os níveis de complexidade da assistência. Em algumas carreiras, como Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social, elas ultrapassam 90% dos profissionais e em outras, como Enfermagem e Psicologia, representam mais de 80%. Estima-se, ainda, que 69,2% das pessoas trabalhando na administração direta da área da saúde, a gestão federal do SUS, são mulheres.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), em recente pesquisa da epidemiologista Elisabeth Hernandes e a Mestranda em políticas para igualdade de gênero nas organizações, Luciana Vieira, a partir da mais recente base de dados desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), para o “Atlas do Estado Brasileiro”, concluiu-se em análise sobre algumas das dificuldades específicas enfrentadas por essas profissionais no contexto da pandemia que: as ações dessas mulheres tanto afetam quanto são afetadas pelas dinâmicas de enfrentamento à Covid-19 no país, e são fortemente influenciadas por determinantes de gênero.

No presente contexto de calamidade pública, uma análise superficial poderia levar à conclusão, equivocada, de que as diferenças de gênero entre os componentes das equipes de saúde voltadas ao enfrentamento da pandemia não seriam relevantes. Entretanto, relações de gênero não comportam simplificações, como destaca a análise de Barata (2009): As relações de gênero atravessam todas as dimensões da vida social, possuem dinâmica própria independente de outros processos sociais e são marcadas pelo antagonismo na relação de dominação das mulheres pelos homens. A idealização do papel do trabalho remunerado, como elemento de fortalecimento da identidade e da iberdade feminina, desaparece face à constatação da pouca ou nenhuma qualificação a maioria dos postos de trabalho ocupados pelas mulheres, dos salários inferiores para as mesmas funções e da dupla jornada, representada pelo trabalho doméstico ou pelas tarefas de cuidado destinado a membros da família das quais invariavelmente são as mulheres que se ocupam. (BARATA, 2009, p. 77).

Feminização da força de trabalho na área da saúde no Brasil A literatura sobre a força de trabalho na saúde aponta para a ocorrência do fenômeno da feminização em todos os postos envolvidos na produção do cuidado aos indivíduos. Por “feminização” entende-se tanto o aumento do peso relativo do sexo feminino na composição de uma profissão ou ocupação (aspecto quantitativo), quanto a transformação qualitativa do alor social dessas ocupações, no sentido de que, à medida em que aumenta a presença feminina, a ocupação passa a ser considerada menos qualificada e as remunerações e o restígio social da profissão decrescem.

No Brasil, há quatorze profissões regulamentadas para atuação na área da saúde: Serviço Social, Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Técnicos em Radiologia. Todos os profissionais dessas formações foram convocados à participação em ações estratégicas de combate à Covid-19, por meio da Portaria 639/2020, do Ministério da Saúde, que estabelece critérios de seleção e solicita a mediação dos respectivos conselhos profissionais.

Em que pese a crescente importância da literatura sobre feminização do trabalho em saúde, nenhum dos conselhos profissionais federais, à exceção do Conselho Federal de Medicina (CFM), possibilita o acesso público online a dados sobre o quantitativo de profissionais segundo sexo, o que denota que essa variável não é considerada relevante no que tange à comunicação desses órgãos com a sociedade.

Além dessas profissões organizadas em conselhos de classe, o funcionamento das unidades de saúde requer o trabalho de outros profissionais que executam tarefas essenciais, tais como recepcionistas, atendentes e profissionais de limpeza. Para essas ocupações, inexistem dados sistematizados que permitam aferir objetivamente as condições de trabalho e os vieses de gênero das áreas de apoio ao funcionamento das unidades de saúde. Pesquisas realizadas no Brasil abordam majoritariamente as profissões de nível superior e, ao mesmo tempo, demonstram a escassez de pesquisas que abranjam todas as demais ocupações envolvidas na produção de cuidado e no enfrentamento das emergências sanitárias. Observações não-estruturadas e a própria natureza dessas atividades, porém, permitem assumir que essas funções de apoio sejam exercidas, majoritariamente, por mulheres. Utilizando a base de dados do IPEA , que permite a desagregação dos dados por sexo, é possível ter uma visão da
feminização da força de trabalho na saúde, abrangendo as principais categorias diretamente envolvidas em ações de atendimento de saúde da população, incluindo médicos, profissionais de enfermagem (enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem) e agentes comunitários de saúde. A tabela 1 abaixo mostra os percentuais e os números absolutos de vínculos de trabalho, segundo sexo, para essas categorias profissionais.

Tabela 1 – Profissionais de saúde das categorias de Medicina, Enfermagem e Atenção Básica em Saúde segundo sexo, no Brasil.

Considerando essas categorias, a força de trabalho feminina corresponde a 78,9% da força de trabalho total na área de saúde.

Como se vê, há uma predominância de mulheres em todas as categorias, à exceção da categoria “médicos”, onde as mulheres representam um pouco menos da metade (47,5%). Mulheres são maioria absoluta nas profissões/ocupações diretamente vinculadas ao cuidado dos indivíduos, atuando como enfermeiras, técnicas de enfermagem, auxiliares de enfermagem e, ainda, como agentes comunitárias. Estes últimos são postos de menor remuneração e valorização social, quando comparados com os de Medicina. Ainda assim, é importante notar que, mesmo dentro da categoria “médicos”, há diferenças importantes entre homens e mulheres em termos de salário e acesso a posições de liderança.

Mainardi et al. (2020) analisaram a diferença de remuneração entre homens e mulheres na profissão médica no Brasil e encontraram que, enquanto 80% das mulheres estão nas três faixas de renda mais baixas, 51% dos homens estão nas três faixas de maiores rendimentos.

Além disso, na disputa por maiores rendimentos, uma médica tem quatro vezes menos chances de êxito em relação a um colega homem. A chance de um médico estar entre os mais bem remunerados da profissão é de 17,1%; para as médicas, essa probabilidade cai para 4,1%. Mesmo ajustando os dados para considerar jornadas de trabalho menor, que poderiam influenciar a renda das mulheres, ao comparar salários de profissionais com características de trabalho similares, a diferença salarial entre homens e mulheres não desapareceu. A maior presença das mulheres em especialidades que costumam ser pior remuneradas – como pediatria, ginecologia e clínica geral – também não foi capaz de explicar as diferenças de renda. Os autores concluíram que “a desigualdade entre os sexos persistiu mesmo após o ajuste dos dados para fatores de trabalho como carga horária, número de plantões, trabalho em consultório, tempo de prática e especialização” e asseveraram: “as razões específicas por trás da desigualdade de renda entre homens e mulheres [na profissão médica] no Brasil permaneceu indeterminada e podem ser baseadas exclusivamente em discriminação de gênero”.

As mulheres médicas também estão sub- representadas nas posições de liderança. Por exemplo, tanto no CFM quanto na Associação Médica Brasileira (AMB), a presidência e todas as vice-presidências são ocupadas por homens. Na nova Diretoria da Academia Nacional de Medicina (ANM), recém-empossada, todos os quinze integrantes são homens. A maior quantidade de mulheres – que hoje já são maioria nas faculdades de medicina – não se traduziu em mais mulheres ocupando espaços de decisão dentro da profissão médica. Riscos às profissionais de saúde na linha de frente do combate à Covid-19 Sendo a imensa maioria dos profissionais de saúde, as mulheres estão na linha de frente do combate à Covid-19, diretamente envolvidas nos procedimentos de cuidado aos indivíduos e, portanto, mais expostas não só a riscos aumentados de contaminação, mas, também, aos demais riscos ocupacionais. Esses incluem, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), excesso de horas trabalhadas, sofrimento psíquico, fadiga, “burnout”, estigmatização e violência física e psicológica, que podem ser amplificados por dinâmicas de gênero. Ainda não há no Brasil dados segregados por sexo sobre contaminações e óbitos em serviço, ou mesmo sobre a incidência de outras doenças ocupacionais e absenteísmo, que permitiriam compreender o impacto da Covid-19 no conjunto dos desafios impostos pelas relações de gênero no setor da saúde. No entanto, dados preliminares da Itália e da Espanha mostram que, nesses países, a maioria dos profissionais de saúde infectados pela Covid-19 são mulheres: respectivamente, 66% e 72%.

Podemos citar, ainda, entre outras dinâmicas de gênero que tornam as profissionais de saúde mais vulneráveis em comparação com seus colegas homens, além da escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs) – que pode afetar a todos indiscriminadamente – a inadequação dos EPIs existentes, que muitas vezes não têm o tamanho correto para a força de trabalho feminina e os episódios de assédio, sexual ou não, no ambiente de trabalho, que têm se multiplicado no contexto da pandemia, e tendem a afetar mais as mulheres . Sem deixar de mencionar a já comentada defasagem remuneratória, que também é um fator de vulnerabilidade.

Não menos importante, em face das medidas de distanciamento social adotadas para a contenção do contágio e das dinâmicas familiares no Brasil, as mulheres profissionais de saúde estão mais vulneráveis que seus colegas homens aos riscos de fadiga, “burnout” e sofrimento psíquico. Segundo dados do IBGE, as mulheres dedicam 21,3 horas por semana com afazeres domésticos e cuidado de pessoas – quase o dobro da dedicação dos homens às mesmas tarefas (10,9 horas). No entanto, ao mesmo tempo em que as mulheres estão sendo chamadas para a linha de frente do combate à Covid-19, elas perdem importantes apoios para o cuidado dos filhos, devido ao necessário fechamento de creches e escolas e à importância de evitar o contato de crianças com avós, que fazem parte do grupo de risco. No caso das
profissionais de saúde que são “mães-solo” (segundo o IBGE 26,8% das famílias brasileiras com filhos são monoparentais femininas), essa pode ser uma situação-limite. Até o momento, não temos notícia da adoção de nenhuma medida de suporte para a realidade dessas mulheres.

Ao considerar que mais mulheres devam decidir os destinos das mulheres, as pesquisas e dados apresentados apontam para a necessidade de se considerar as questões de gênero e o fenômeno da feminização para nortear a tomada de decisões acerca da gestão da força de trabalho na saúde e, assim, obter melhores resultados no enfrentamento da pandemia causada pela Covid 19.

A esse respeito, as recomendações de políticas feitas por diferentes organismos internacionais parecem tão óbvias quanto difíceis de alcançar no contexto brasileiro. Entre outras, citam-se: 1) garantir a representação igualitária das mulheres em todos as instâncias de planejamento e de tomada de decisão sobre a resposta à pandemia; 2) dar atenção às necessidades psicossociais, de proteção à saúde e de ambiente de trabalho específicas da força de trabalho feminina, incluindo acesso a EPIs em tamanhos adequados, a itens de higiene íntima próprios às mulheres e a existência de medidas claras e explícitas para prevenir e mitigar casos de violência; 3) oferecer apoio para cuidados infantis ou geriátricos às profissionais atuantes na linha de frente do combate à Covid-19; 4) coletar dados sobre os impactos diretos e indiretos
da pandemia desagregados por sexo e idade.

Conforme destacou a vice-secretária geral da ONU e diretora executiva da ONU Mulheres em sua última declaração , a pandemia pela Covid-19 é um fenômeno que vai muito além de uma situação de saúde coletiva e expõe as deficiências de acordos públicos e privados que funcionaram até hoje baseados num enorme contingente de mulheres desempenhando múltiplos papéis e recebendo baixos salários. Tais acordos deverão romper-se e implicar a necessidade de elaboração de estratégias para lidar com os impactos sanitários e econômicos da Covid-19 nas mulheres e, em especial, para as mulheres que estão participando diretamente do enfrentamento coletivo da doença. Para que estas estratégias sejam abrangentes e eficazes, é necessário que as próprias mulheres estejam engajadas em sua criação, sejam beneficiárias prioritárias e protagonistas na construção de soluções a longo prazo.

A pandemia da Covid-19 evidenciou dinâmicas de desigualdade que não poderão ser ignoradas. As sociedades, querendo ou não, se viram imbricadas numa realidade que pode ser definida recorrendo-se ao velho lugar comum: são, como uma corrente, tão fortes quanto seu elo mais fraco. Os rearranjos nacionais e globais pós-Covid-19 implicarão no desenho – ou no redesenho – de novas funções para o Estado, entre elas a de reduzir desigualdades. O reconhecimento da participação da força de trabalho feminina na produção da riqueza e do bem-estar social é parte integrante disso.

Em artigo publicado em 05/03/2020, Fernanda De Negri, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do IPEA, fez uma reflexão sobre a visibilidade das mulheres na ciência e o desafio de aumentar sua representatividade em diferentes áreas do conhecimento no Brasil. A pesquisadora afirma que superar a invisibilidade das mulheres é um desafio diário para todas e cada uma de nós, especialmente em áreas como a ciência, onde sua carreira depende de ser reconhecida por suas contribuições intelectuais ao campo.

Hoje, as mulheres são cerca de 54% dos estudantes de doutorado no Brasil, o que representa um aumento impressionante de 10% nas últimas duas décadas. Esse número é semelhante ao dos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, onde em 2017 as mulheres conseguiram 53% dos diplomas de doutorado concedidos no país. No Brasil, assim como no resto do mundo, no entanto, essa participação varia muito de acordo com a área do conhecimento. Nas ciências da vida e da saúde, por exemplo, as mulheres são a maioria dos pesquisadores (mais de 60%), enquanto nas ciências da computação e matemática elas representam menos de 25%.

Apesar de serem a maioria das pessoas com doutorado em diversas áreas, as mulheres brasileiras não estão tão bem representadas nos níveis mais altos da carreira. Um estudo recente mostrou que as mulheres representam apenas 24% dos beneficiários de um subsídio do governo brasileiro concedido aos cientistas mais produtivos do país (a bolsa produtividade). A sub-representação em posições de liderança ainda persiste: as mulheres cientistas são apenas 14% da Academia Brasileira de Ciências.

Poder-se-ia levantar a hipótese de que, por várias razões (como ainda ser a principal responsável pelas crianças), as mulheres são menos produtivas que os homens. No entanto, quando se trata de produção científica, vários números mostram que as mulheres brasileiras superam seus colegas do sexo masculino. Um artigo publicado na Nature Magazine, há alguns anos, descobriu que as mulheres eram responsáveis por quase 70% do total de publicações de cientistas brasileiros entre 2008 e 2012, um dos maiores índices do mundo. O impacto do trabalho de homens e mulheres também é comparável, como mostra um estudo mais recente sobre gênero no cenário global da pesquisa, da Elsevier, que leva em conta o número de citações desses artigos.

Talvez a falta de mulheres nas principais posições científicas seja o resultado de uma questão mais profunda no país, causada pelos mesmos fatores que explicam por que os salários das mulheres são mais baixos ou porque há poucas mulheres em conselhos de empresas, ou mesmo em posições governamentais de alto nível. Talvez as mulheres ainda não sejam reconhecidas como capazes e competentes pelos responsáveis pela seleção dos candidatos que têm acesso a esses cargos: na maioria dos casos, homens. Talvez ainda continuemos invisíveis. Superar essa invisibilidade requer o compromisso de toda a sociedade. Campanhas educativas para estimular as meninas a se tornarem cientistas e discutir o viés inconsciente em processos seletivos são exemplos de iniciativas em andamento no Brasil que são bem-vindas.
Não menos importante é a constatação feita pela ONU publicada no Dia Internacional da Mulher, que mulheres e meninas continuam excluídas de participação plena na ciência. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, Unesco, atualmente, menos de 30% dos pesquisadores em todo o mundo são mulheres. Apesar dos esforços realizados nos últimos 15 anos, pela comunidade global, para inspirar e envolver mulheres e meninas na ciência. No entanto, elas continuam sendo excluídas de participar plenamente da ciência.

A agência observa que apenas cerca de 30% de todas as alunas selecionam no ensino superior áreas relacionadas ao STEM, sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

Mesmo diante da evidência de que a ciência e a igualdade de gênero são vitais para a consecução das metas de desenvolvimento estabelecidas internacionalmente, incluindo a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Devido à esta premente necessidade, enfatizou que neste ano, que marca o 25o aniversário da Declaração de Pequim e Plataforma para Ação, a ONU promoverá, “com urgência renovada, o acesso de meninas e mulheres à educação científica, treinamento e empregos nessa área.”

A diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, ao afirmar que a ciência e a inovação podem trazer benefícios que mudam a vida, especialmente para aqueles que são os mais deixados para trás, como mulheres e meninas de áreas remotas, idosos e pessoas com deficiência, lembrou que “a ciência também será essencial para o trabalho decente e empregos do futuro, inclusive na economia verde, e poderá criar um mercado para as ideias e produtos inovadores das mulheres.”

Para a chefe da ONU Mulheres, é preciso quebrar os estereótipos de gênero que ligam a ciência à masculinidade e expor as gerações jovens a modelos positivos de engenheiras, astronautas e pesquisadores.

A chefe da agência citou a iniciativa os Princípios de Empoderamento da Mulher, que é uma plataforma estratégica da ONU Mulheres para a participação do setor privado. Através do programa, cerca de 500 empresas de tecnologia já se comprometeram a promover a igualdade de gênero e o empoderamento da mulher em suas instituições e fez um apelo para que empresas de ciência e tecnologia sigam esses exemplos, e para que a comunidade de investidores direcione seus investimentos para empresas que adotaram esses princípios, ao se inspirar na recente declaração de Antonio Guterrez, Secretário Geral da ONU, que afirmou ser a ciência, uma disciplina de cooperação.

E as engenheiras continuam superando todos os obstáculos, desde a formação profissional, passando pelo estágio, pela experiência machista nos canteiros de obras, onde a maioria é de homens, e até hoje, no Século 21, num mercado de trabalho que ainda restringe oportunidades para as mulheres. Prova disso é que, no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro, são 24.000 mulheres registradas, em um universo de 130.000 profissionais.

Embora o CREA-RJ, seja o pioneiro no Brasil, fundado em 1934, em toda a sua história de mais de oito décadas nunca teve uma presidente mulher. Mas de que forma a pandemia vai afetar ainda mais a vida das demais mulheres como um todo? Pesquisas mundiais vêm mostrando como as mulheres muito têm sofrido durante a pandemia e revelam que o alto índice de violência contra elas e as crianças, não para de crescer. As mulheres profissionalizadas estão sofrendo mais que os homens
profissionalizados. A velha divisão social do trabalho, ou seja, o acúmulo dos cuidados com a casa e os filhos, onde as mulheres é que dão mais, permanece também na pandemia. Mesmo assumindo jornadas duplas, sem que isto comprometa a competência e a dedicação no trabalho, ainda têm que superar uma carga enorme de preconceitos.

A pandemia escancarou a desigualdade de gênero no Brasil. As mulheres de baixa renda são as que mais sofrem, são as maiores vítimas. Afinal há mulheres que vivem em casas e outras, em lares. Na ideia de casa está contido o conceito da noção de moradia, que é o lugar onde se repousa durante a noite e que a vida social é feita fora dela. E o lar é a visão romântica construída a partir do final do Século 18. Uma ideia burguesa, formada por famílias perfeitas e felizes, como nos comerciais de margarina, que tende a privilegiar os benefícios em detrimento dos problemas, mas não é uma realidade para todas.

O Brasil é um país campeão em feminicídio. Machismo não acaba (ou, não para). O Feminicídio não acaba.

As mulheres estarão assumindo um protagonismo muito grande daqui para frente, nos tempos pós pandemia. A sororidade que nos é necessária, nos faz imprimir o “dar as mãos”, quem se elevar deve alçar ao alto aquela que precisa. Ninguém solta a mão de ninguém. Por hora, a pergunta é como aumentar a presença de mulheres em posições de liderança, fator essencial para que as contribuições e necessidades próprias das mulheres sejam vistas e atendidas tanto no nível das organizações como no nível das políticas de Estado. A esperança é a de que, agora, ao contrário do que aconteceu nas duas guerras mundiais, as mulheres não permitirão que se passe um século para que sua atuação no front seja efetivamente registrada e valorizada.


Iara Nagle é engenheira Civil, presidente da ABEA (Associação Brasileira de Engenheiras e
Arquitetas) e do Conselho Diretor do Clube de Engenharia.

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